Sustentabilidade Urbana: Fígado, Cérebro ou Coração?
Pergunte-se a um grupo de médicos qual o órgão mais importante do corpo humano e certamente assistiremos a diálogos intermináveis e inconclusos. O fígado é o filtro, o coração é a bomba, o cérebro toma decisões, cada um com sua fatal indispensabilidade. Impossível o funcionamento aceitável do corpo sem o concurso destas peças. Coração sem fígado se envenena, fígado sem cérebro se desgoverna, cérebro sem coração morre de inanição e, dizem os poetas, de falta de emoção…
Sustentabilidade urbana, conceito complexo e mal conhecido, apresenta também seus três componentes orgânicos essenciais, inexoráveis e indispensáveis: o espaço ambiental e cultural, o desenvolvimento econômico e a responsabilidade social.
Inútil privilegiar um deles em detrimento de qualquer dos outros. Temos assistido a intervenções de atores sociais ignorantes desta cooperação essencial, ou mal intencionados. Empresários sem escrúpulos a prejudicar o ambiente e a cultura, ambientalistas facciosos e oportunistas a travar o desenvolvimento e administradores públicos privilegiando o corporativismo e interesses individuais, para imenso prejuízo da sociedade. Além disso, entidades estrangeiras públicas e privadas sentem-se no direito de impor condutas inexistentes em seus países. É notória a influência de ONGs forasteiras que agem para prejudicar nosso bom funcionamento orgânico: ao invés de preocupar-se em recompor suas florestas devastadas, seus litorais destruídos e suas manadas de espécies quase extintas, vêm aqui incentivar a cizânia e pontificar sobre orações que não rezam em suas próprias casas.
Compete unicamente aos cidadãos brasileiros conceber e implantar nossa sustentabilidade. Tecnologia do exterior pode ser estudada, pois arrogância não está no caráter dos brasileiros. Mas a soberania nacional afasta qualquer ingerência: brasileiros decidirão sobre o espaço Brasil, e não qualquer intrometido interessado em dificultar o aperfeiçoamento de nossa nação, talvez com vistas a minar antecipadamente o amadurecimento de um pujante concorrente.
Prosseguindo em nossa analogia de sustentabilidade e anatomia, vamos admitir que o fígado seja a proteção ao meio ambiente e ao patrimônio cultural. O legado de parques, rios, fauna e flora bem como o conjunto histórico e cultural das cidades merecem respeito e reverência permanentes, de tal forma que as futuras gerações recebam aquilo que nos emprestaram durante nossa vida. É dos futuros seres humanos este patrimônio ambiental e cultural, e não de nossa geração.
Hoje, os pensadores urbanos tem consciência de que a melhor estratégia para a boa qualidade ambiental e cultural é o planejamento, o projeto urbanístico bem concebido e a execução de intervenções no tecido metropolitano a fim de melhorar o funcionamento sustentável. Não se protege por inação e abandono. Ao nada fazermos com uma margem de rio, com um grupo de árvores ou com um edifício tradicional, muitas vezes agimos contra a cultura e o ambiente.
Tombamento, conforme querem alguns ideólogos puristas ou hipócritas oportunistas, sem contar com recursos e sem manutenção, leva à decadência, à deterioração e ao abandono dos espaços. Se vamos preservar, urge prover recursos para manter, bem como urge ensinar as novas gerações, didaticamente: turmas de jardineiros e operários de manutenção trabalhando em meio a professores e pais, transmitindo cultura a crianças e adolescentes. Tombar para favorecer dependentes químicos ou marginais vivendo no lixo decorrente do abandono é demonstrar ignorância ou má fé. Se higienismo é ruim, negligência administrativa privilegiando o assistencialismo e a exploração do miserável por oportunistas é muito pior.
O coração e a circulação representam, sem dúvida, o desenvolvimento econômico, a geração e a distribuição de resultados que coroam o mérito humano. Sem trabalho e recursos financeiros, a miserabilidade incentivaria massas famintas à destruição, à prevalência do mais forte – “homem lobo do homem”. A propriedade, a livre iniciativa, lucros honestos e consequentes pagamentos de salários e impostos são sagrados para os investimentos, para a melhoria das condições da cidade, de transportes públicos, espaços de convivência, parques, creches, escolas e hospitais. Sangue vivo e ativo a motivar os cidadãos.
O coração precisa de ritmo, dado à sociedade por instituições, leis, regras formais e informais, costumes, crenças, personalidade e atitude da sociedade, cadência do povo.
E desgovernada seria a sustentabilidade sem o livre arbítrio do cérebro, representado pela responsabilidade social. Justiça, generosidade e ética. O propósito deve definir qualidade de vida para todos, inserção, igualdade de oportunidades, espaços urbanos democráticos e privilégio a pedestres, ciclistas, usuários do transporte público.
Polos urbanos densos, compactos, e com “caminhabilidade”, onde trabalho, lazer, serviços e habitação são próximos, ou seja, poucos minutos entre origem e destino. Acessibilidade fácil e agradável a idosos e pessoas com deficiência. Inexoravelmente, um dia teremos deficiências; o tempo nos rouba dia a dia agilidade e capacidade física.
Onde investir os recursos provenientes de impostos e taxas? Certamente não na ineficiência e na corrupção, ou na defesa de corporativismos improdutivos e sectários de grupos em prejuízo da sociedade, da Nação.
Algum médico urbano consciente teria coragem de dizer qual das componentes desta analogia é a mais importante?
Ambiente sem dignidade econômica, desenvolvimento sem consciência social, função social sem projeto urbano racional de progresso sustentável?
O legado a se deixar para as próximas gerações é a solidariedade sentimental em torno de uma atitude ética harmonizando esta sustentabilidade urbana nacional, completa, perene e funcional.
João Crestana é presidente do Conselho Consultivo do Secovi-SP (Sindicato da Habitação), da Comissão Nacional da Indústria Imobiliária da CBIC e pró-reitor da Universidade Secovi